Nas vésperas
da reencarnação, sou impelido a falar-vos de minha
bancarrota espiritual!...
Instrutores e
guardiões recomendam-me destacar a importância do ouvido...
Conseguiria,
no entanto, ensinar alguma coisa?
Devo
compreender a razão dessa ordem.
Nada possuo de
bom para dar; contudo, as vítimas da calúnia conseguem reter o doloroso
privilégio de exibir a própria falência!...
Ó Deus de
Amor, daime forças para confessar a verdade, apenas a verdade!...
Pedreiro
modesto, órfão de mãe desde a meninice, casei-me por amor, embora contra os
desígnios de meus irmãos, que me reservavam noiva diferente. Garantindo-me a
escolha, porém estava nosso pai a meu lado – o abnegado pai que amadurecera o
raciocínio nas dificuldades do mundo e iluminara o coração no conhecimento do
Espiritismo. Carinhoso, assegurou-me o enlace, aprovou-me as decisões e
intentou preparar-me, diante da vida, dispensando-me ensinamentos que eu
simulava aceitar, de modo a lhe não perder a complacência e a ternura...
Seis anos
passaram sem que a hostilidade familiar contra a minha mulher esmorecesse, seis
anos de maledicência na base da perseguição cordial...
Alice, a
companheira inexperiente, proporcionara-me dois filhos queridos, quando se
engravidou pela terceira vez.
Nessa época o veneno
já me corroera a confiança.
Apontava-se
amigo nosso de infância como sendo o responsável pelos supostos desacertos
daquela que a Providência Divina me colocara nas mãos por esposa leal.
Circunstância
provocadas pelos que mostravam interesse em nossa desunião, falsos testemunhos,
bilhetes anônimos e difamações fantasiadas de bons conselhos acabaram por
arruinar-me...
Discutimos.
Acusei-a,
defendeu-se. Chorou, escarneci...
E, para
fiscalizar-lhe a conduta, transferi-me para a casa paterna, ameaçando tomar-lhe
as crianças, através do desquite. Para isso, porém, queria provas, tinha fome
de confirmações do inexistente.
Meu pai surgia
conciliador:
- Meu filho,
paternidade é compromisso perante Deus...
- Você não tem
direito de proceder assim...
- Onde a caridade
para com a esposa ingênua?...
- Mesmo que
ela errasse, constituiria isso motivo para uma sentença de abandono implacável?
- Há
comportamentos ditados por desequilíbrios espirituais que não conhecemos na
origem...
- Pense nas
tragédias da obsessão que campeia no mundo...
- E os
pequeninos? Terão eles a culpa de nossas perturbações?
- Recorramos à
prece, meu filho!... A prece nos clareará o caminho...
Silenciava, ao
recolher-lhe as advertências, em face da veneração que lhe tributava, mas, no
íntimo, articulava minhas respostas imanifestas: “ora-rei pela boca do
revolver”, “pobre pai”, “bobo de velho com setenta e seis anos”, “cabeça
tonta”, “caduco”, “fanático”...
E, noite a
noite, espreitava, de longe, os movimentos de Alice, à feição da serpente vigiando
a furna de que aparentemente desertara.
Duas semanas
decorreram, normais, quando sobreveio o momento em que lobriguei o vulto de um
homem que saía de nossa casa...
Seria o
rival...
Guardei o
segredo e prossegui na tocaia.
Mais quatro
dias e o mesmo homem chegou de carro, despediu-se do motorista e entrou...
Puxei o
relógio. Onze horas e quinze minutos. Noite quente.
Prevenido,
acerquei-me da moradia, que se localizava no subúrbio remoto.
Encontraram-se
os dois com mostras de intimidade e, a distância, notei que se acomodavam num
banco de pedra do pátio lateral, que a sombra envolvia. Conversavam sugerindo
carinho mútuo. Enxergava-lhes o perfil, mergulhado em penumbra, conquanto não
lhes ouvisse as palavras, e estudei, friamente, a posição que ocupava na peça
estreita.
Desvairado,
consultei o portão de entrada, verificando-o semiaberto. Acesso fácil.
Com a
sagacidade de um felino, avancei, descarregando a arma nos dois.
Ouvi gritos,
mas ocultei-me na vizinhança, para fugir em seguida, a sentir-me vingado.
Não vacilaria
arrostar a policia, se necessário.
Tentando
refrigerar a cabeça, procurei descansar algumas horas em praia deserta.
Entreguei o revólver à lama de esgoto esquecido e voltei a casa para saber,
aterrado, que eu não apenas assassinara minha esposa, mas também meu abnegado
pai que a socorria...
Não acreditei.
Corri ao
necrotério e, ao reconhecê-los, tornei ao lar, atormentado pelo remorso, e
enforquei-me, sem dar outra impressão que não fosse a de um homem que a dor
fizera delirar, atirando-o ao suicídio...
Exilado por
minha própria crueldade, em vales tenebrosos, nunca mais vi os que amo...
Entendereis o
que sofro?
Quantos anos
passaram sobre os meus crimes? Não sei... Os que choram sem o controle do tempo
não sabem contar as horas...
Misericórdia,
meu Deus!...
Daí-me a
reencarnação, os empeços da Terra, a luta, aprovação e o esquecimento, mas
ainda que eu padeça humilhação e surdez, durante séculos, permiti, Senhor, que
eu aprenda a escutar!...
João/Francisco
C. Xavier
Livro:
Luz no Lar
Ed. FEB